
Inquisição nas mãos de reis
Segundo Joseph de Maistre, é uma “verdad fundamental” a inquisição ter sido estabelecida pelos reis na Espanha, ao contrário do que normalmente se forma na imagem mental com que abrimos esse estudo – a Inquisição geralmente é diretamente associada ao poder da Igreja sobre tudo e todos. Veremos como isso não se sustenta totalmente.
De fato, os reis católicos Fernando II de Aragão e Isabel de Castela recebem autorização do papa Sixto IV, em 1478, para instalarem um tribunal independente da gerência dos bispos, o que aconteceu dentro do planejado em conjunto com o confessor do rei Fernando, o Frei Tomás de Torquemada, futuro Inquisidor-Geral de Castela (1483). Segundo Frédéric Max, “os tribunais terminaram por depender, na verdade, mais do rei do que do papa. O que não impediu que a Inquisição, jogando dos dois lados, se apoiasse nos privilégios recebidos do papa. O Santo Ofício exigia – deteve durante muito tempo – um poder ao mesmo tempo secular e eclesiástico” 25. Semelhante procedimento seguiu o rei português um cinquentenário depois: João III pediu autorização ao papa Paulo III em 1531 e a recebeu em 1536, quando puderam ser estabelecidos seis tribunais no país, dos quais vigoraram apenas os de Lisboa, Évora e Coimbra.
Já na segunda metade do século XVI havia 12 tribunais que dependiam do Conselho da Suprema e Geral Inquisição, nem todos na Península, uma vez que alguns domínios de ultramar receberam igualmente o privilégio de contarem com um tribunal próprio26. Na ocasião citada, D. João III de Portugal pede, negocia, discute com papa sobre quem mandaria na instituição inquisitorial, e acaba vencendo afinal em 1536, quando uma bula permite a criação de um tribunal aos moldes dos espanhóis e sem interferência papal - em 1540 se deu o primeiro auto-de-fé. Pelas somas em dinheiro e favores que o rei ofereceu ao papa, pode-se dizer com Anita Novinsky que a Inquisição
26 O Brasil nunca sediou um tribunal da Inquisição, razão pela qual milhares de brasileiros, muitos deles indígenas, atravessaram o Atlântico para prestarem contas em Lisboa de seus pecados contra a fé.
portuguesa foi “comprada” ao papa27. O estabelecimento da Inquisição tem a ver, portanto, com a centralização do poder nos reinos ibéricos.
Pelo rigor da perseguição aos cristãos-novos, logo Roma faria oposição28 à atuação do tribunal lisboeta, tomando o lado de suas vítimas. Mesmo assim, é preciso concordar com Frédéric Max quando diz que “Roma afaga e castiga”: em 1547 concedeu indulgência aos “marranos” e um ano depois o perdão geral. No entanto, entre esses dois gestos de benevolência, fez publicar a bula Meditatio cordis, pela qual os inquisidores portugueses ganham caminho livre para arbitrariedades, afastando-se de uma posição na qual poderia ainda servir de recurso aos condenados. Sucessivos papas abdicam do direito de interferir nos desígnios da Inquisição, já sem poder para longas querelas como as da Baixa Idade Média.
Assim, a Inquisição teria sido “uma instituição vinculada ao Estado”, apesar de seu “aparato religioso” 29. A lógica da relação entre Igreja e Estado reside, então, mais na questão da defesa de um sistema tradicional no qual a “heresia religiosa e a heresia política caminharam juntas” 30
Bodes expiatórios
Tendo sido citada a forma como se deram as negociações entre reis e papas, devemos passar à análise das importações dos problemas e das soluções no espaço ibérico, com destaque para uma das principais razões, senão a principal, da instituição da Inquisição moderna em moldes muito diferentes da medieval. A perseguição da Inquisição na Península Ibérica só pode ser chamada de implacável quando os alvos são os judeus convertidos ao cristianismo, relapsos na nova fé e/ou reincidentes em práticas judaicas – ditas “judaizantes”. Eles também eram conhecidos por cristãos-
O Tribunal de Lisboa foi tão feroz nas punições, e suas arbitrariedades chegaram a escandalizar Roma, que interrompeu as atividades inquisitoriais em 1674, com apoio do Padre Antônio Vieira, que fazia campanhas contra a sanha da instituição. Mas ela volta a funcionar em 1681 para reunir recursos para o casamento do Príncipe D. Pedro (convenceram o papa e este permitiu).novos, conversos, ou “marranos”, num conflito que articula racismo, radicalização religiosa e causas sociais.
Um indício de que o anti-semitismo peninsular deu enfoque a agravantes que não encontramos em outros países é possibilitado pela contraposição de alguns acontecimentos marcantes para a ruína do pouco de tolerância que ainda sobrava: em 1391 houve um massacre em Sevilha que deixou quatro mil judeus mortos. É difícil precisar os motivos, por que as sucessivas intempéries naturais e epidemias eram seguidamente percebidas como sinais da ira divina diante da cumplicidade dos cristãos com relação à presença destes infiéis - uma designação que cabia também aos muçulmanos31, mas estes eram indivíduos que não teriam proporcionado tantos pretextos como os judeus para servirem de bodes expiatórios. Isso se deve, em primeiro lugar, ao espaço que cada grupo ocupava na sociedade. De fato, a situação dos judeus vai se modificando: antes preenchiam espaços entre povo e camadas dominantes; depois, por ocuparem cargos importantes, passaram a ser criticados quando reuniam prestígio maior que cristãos (os postos que conferissem fama deveriam pertencer aos cristãos, conforme se advogava na época). Assim, o antijudaísmo vai se espalhando, mas é um antijudaísmo voltado cada vez mais especificamente a esses cristãos-novos, agravado pela imposição forçada do batismo, seguida da ordem de abandono da heresia judaica – seja para a Espanha, em 1492, seja para Portugal, em 1497, as únicas alternativas a tais imposições eram a fuga ou a morte.
Esses cristãos-novos logo encontrariam uma brecha para se valerem de sua situação, o que gerou um grande problema, fundador da necessidade da Inquisição repaginada a partir do século XVI: as portas que antes se encontravam cerradas aos judeus se abriram para “marranos” – direitos, casamentos, cargos letrados, etc. Esse é o aspecto social da criação de novos tribunais na Península Ibérica, na medida em que a classe média, e mesmo a nobre, se abria para os antigos judeus, historicamente relegados a funções “desonrosas” por uma legislação cujo tom é emprestado por
31 Após a tomada de Granada (1492), os mouros tiveram que fazer a mesma escolha que os judeus de Sevilha um século antes, o que recriou alguns dos mesmos problemas. Mouriscos, análogos aos marranos, viveram na clandestinidade até a expulsão definitiva de 1609; foram alvos recorentes da Inquisição, sobretudo em Granada (chegaram a 78% das vítimas de investigações).
Martim Pérez no seu “Libro”, conforme já tivemos oportunidade de ver. Os muçulmanos não passaram por essa brecha, pois foram mais diretamente combatidos na longa Reconquista – os que ficaram engrossavam a massa trabalhadora, do campesinato aos pequenos serviços urbanos, muito diferentes da sofisticação letrada de grande parte dos judeus, que contavam também com uma vasta experiência no mundo mercantil, sobretudo por sua participação na expansão ultramarina.
A situação chegou a tal ponto que, em 1449, antes mesmo das conversões em massa, houve um massacre a judeus conversos em Toledo, enquanto “nenhum judeu foi tocado” 32. “Neste fato jaz a especificidade da Inquisição Moderna. Seu móvel principal foram os judeus espanhóis convertidos ao catolicismo” 33. Os reis peninsulares agiram de diferentes modos para resolver a questão judaica, e fizeram sucessivos recursos à Igreja com o mesmo fim, dando mais uma vez a ideia de apoio mútuo das duas esferas de poder para a manutenção de uma certa ordem. A Inquisição, chamada de Monstrum horribilem pelos judeus, viria a se instalar para fazer exatamente aquele tipo de extirpação que se procedeu em Toledo, mas dentro de um quadro mais controlado e metódico.
Por fim, o caráter das perseguições não era só religioso. Havia um aspecto racista na medida em que se generalizam as provas de “pureza” para acessar cargos e ordens, sempre conduzidos por comissários da Inquisição.
Sobre esse racismo, cabe ainda uma reflexão proposta por Ronaldo Vainfas, que analisa uma obra do Frei Francisco Machado, o “Espelho dos cristãos-novos”, escrito em 1540, época da instalação do primeiro Tribunal em Portugal. Segundo ele, trata-se de “uma condenação da crença judaica, portanto – e nem tanto dos judeus por serem judeus -, e uma súplica à catolização sincera dos conversos” 34. É um testemunho interessante, sobretudo quando sabemos que foi proibido pelo Tribunal de Lisboa, pois se acreditava que obras que informassem sobre outras crenças poderiam levar a que pessoas se interessassem por professá-la ou por defender seus argumentos. Esse tipo de material possuía na sua natureza (explicar crenças diferentes para os cristãos) a possibilidade de perpetuação daquilo que se queria extirpar. Mas o pesquisador detecta um viés interpretativo do judaísmo que funciona como chave para entendermos o que os inquisidores queriam dizer com o termo “judaizante”.
De todo modo, não seria o judaísmo doutrinário retratado e condenado por frei Machado o que triunfou no mundo português, quer nos monitórios da Inquisição, quer nas práticas das famílias conversas. Nos documentos normativos do Santo Ofício, desde cedo sobressaíram (...) as práticas rituais meramente indiciárias da possível criptojudaísmo, e foi com base nelas que os cristãos-novos se viram denunciados e presos até meados do século XVIII.35
Esse desinteresse pelos temas judaicos como eles são, e a caricaturização de suas práticas formam o que Vainfas chama de “triunfo dos estereótipos”. O livro do frei era um “libelo antijudaico, em matéria religiosa, porém desprovido de conotações racistas, ao contrário do que o Santo Ofício faria triunfar como prática nos séculos seguintes” 36.
Ainda sobre o problema dos conversos, cabe destacar que a Inquisição Portuguesa é importada – por vários motivos. Em primeiro lugar porque o contingente judaico que Portugal recebe no fim do XV em decorrência das fugas e da conversão geral de 1492 recria as condições para a radicalização do antijudaísmo já visível na Espanha. “Portugal, que não conhecia qualquer “problema judaico” até 1492-1497, viu sua pequena, mas ativa comunidade judaica (...) acrescida de milhares de judeus hispânicos – e todos foram abruptamente transformados em cristãos pelo decreto real de 1497”37.
Em outras palavras, “o judaísmo, na prática, permaneceu “livre” até os anos 1540, tempo em que a Inquisição portuguesa passou realmente a funcionar “38. Tal é a virada nas formas costumeiras de convívio que Espanha e Portugal vão se fechar39
O protestantismo não encontrou espaço para se radicar no seu território, sobretudo na Espanha, onde Felipe II chega ao ponto de chamar de volta todos os espanhóis que estudam fora nos países estrangeiros; a censura é instalada, publicam-se os índex a partir de 1551 e proibem-se as importações de livros em 1558.
para novas ideias e se congelar na missão de manter a fé cristã pura, e isso deixa marcas profundas inclusive no presente desses países, na medida em que a preocupação com a Inquisição ocupou o topo da lista de prioridades até pelos quase o século XIX, época em que também saem de vigor as leis de “limpieza” e pureza de sangue e de “mancilla”.
Como tópico final do estudo, proponho uma rápida visão sobre a experiência de um personagem importante para a historiografia da Inquisição, na medida em que passou por suplícios e rompeu com a ordem de permanecer em silêncio absoluto em relação ao que ocorreu no tribunal onde foi interrogado, legando um relato cheio de detalhes importantes para a compreensão do sistema inquisitorial, com sua burocracia e truculência características. Isaac Martin era um mercador41 inglês, protestante, que fazia negócios na Península Ibérica sob a proteção do recém assinado Tratado de Utrecht (1713), pelo qual não poderia sofrer maus-tratos em decorrência única de sua fé. Tudo ocorreu em Málaga, capital da província da Andaluzia, entre 1718 e 171942.
Primeiro, foram confiscados sua Bíblia e mais alguns livros de religião, com o que Martin teria ficado muito surpreso, pois já havia passado quatro anos circulando pela Espanha e Portugal e nunca teve problemas desse tipo. Foi denunciado sob suspeita de ser judeu devido ao seu nome e o de seu filho, Abraham.
Os prelados fizeram averiguações em decorrência dessa acusação, fazendo perguntas a vizinhos e pessoas conhecidas. “Todas responderam que achavam que eu era um herege, que eu havia vivido na Espanha e em Portugal antes de ir àquele lugar,
A abolição completa desses estatutos de limpeza na Espanha ocorreu somente em 1856.
O fato de ser mercador é fundamental para a compreensão do que se passa com ele. Em primeiro lugar, porque leva a uma investigação mais lucrativa, pois o confisco seria maior (como de fato foi); em segundo lugar, porque dá testemunho da circulação de indivíduos que possuem objetivos mercantis que superam o receio de pagar pela fé que propagam.
e que naqueles países não se tem clemência com judeus, que são condenados ao fogo quando não se tornam católicos romanos”
Uma das acusações que lhe foram feitas, uma vez no tribunal de Granada, para onde foi levado, dizia respeito ao fato de ter dado uma risada quando um marujo de Málaga perguntou-lhe se era judeu. O Inquisidor assim lhe admoesta: “neste país, não há nenhum motivo de riso quando se é confundido com um judeu”, ao que Isaac Martin responde: “Monsenhor, antes de vir a Málaga, vivi em diversos locais da Espanha e de Portugal. Ali não se fala de judeus e a Inquisição os queima se eles não mudam de religião. Se eu fosse judeu, não teria vindo me expor neste lugar com mulher e quatro filhos. Acredito que o senhor sabe muito bem que eu não sou judeu”
Além disso, teria sido acusado de abrigar um judeu de Livorno durante duas horas em sua casa. Martin responde admitindo tê-lo recebido, mas que apenas pensou que pudesse ser judeu pela aparência, que não tinha como ter certeza, teria negligenciado, portanto, sua obrigação de acusar.
Martin sofreu outras acusações, e é bem verdade que é muito menos por ser judeu do que por ser protestante e ter defendido em inúmeras ocasiões sua fé que agravou sua condição, sendo salvo pela intervenção de cônsules e até mesmo do rei da Inglaterra.
Outra coisa que chama a atenção é o fato de Portugal e Espanha serem mais de uma vez citados como lugares onde judeus não encontram misericórdia, algo que, pelo avançado do tempo, reforça o caráter progressivo da intolerância iniciada com o preconceito aos conversos no século XV. Isso vai de encontro ao que afirma Joseph de Maistre. Segundo este autor, que faz proselitismo com as supostas benesses da Inquisição para sua nação, “en España y en Portugal, como en cualquiera otra parte, se deja tranquilo al que se mantiene tranquilo”45. Não me parece que Isaac Martin pudesse concordar com isso.
Por fim, cabem um exercício de “pesagem” entre o que se passa com o mercador inglês e sua família, que nunca recebeu notícias de seu paradeiro até que se encontraram para serem deportados carregando nada mais que as roupas do corpo, e
as interpretações do autor citado acima, para quem se deve acabar com o “fantasma absurdo de una malevolente ignorancia, que la Inquisición condenaba a muerte por simples opiniones, y que un judío, por ejemplo, era quemado pura y simplesmente por el sólo delito de ser judío.”
Segundo sua forma de ver as coisas, os judeus conversos eram convidados a sair da Espanha e se escolhessem ficar “sabían a qué se exponían” 47. A argumentação beira o sofisma quando trata dos direitos e leis, argumentando que “nadie tiene el derecho de quejarse de una ley que ha sido hecha para todos”
Considerações finais
Retomarei alguns aspectos do estudo para tornar mais claro um eixo que segui com mais ou menos rigor e que diz respeito ao rastreamento de indícios da durabilidade de um sistema culpabilizador, arquitetado sobre a lógica confessional, mas fazendo uso de técnicas violentas em nome de uma intolerância surge na Idade Média, mas canaliza-se em direção a novos alvos a partir do século XV. Tal eixo contorna a questão da heresia como um termo volátil que designa coisas diferentes em épocas diferentes, mas que permanece no centro de uma culpabilização de longo prazo49. De fato, o herege queimado na fogueira não é aquele que se desviava da leitura católica da palavra revelada, mesmo quando nisso estava contido o risco de cisma, nem mesmo era o indivíduo que oferecia alternativas à Igreja enquanto mediadora entre o sagrado e o profano, mas sim, o apóstata máximo, aquele que tinha pacto com diabo, o “alumbrado” que se comunicava com Deus e desdenhava dos sacramentos, sobretudo quando se achavam em situações que levavam outros com eles. O desregramento e o laxismo da fé eram o outro lado da moeda das “práticas judaizantes” tão execradas e que cabiam em todos esses moldes e em muitos outros.
“Quando a Igreja ortodoxa torna-se mais severa e aumenta sua repressão, é porque os hereges, os
dissidentes, contestatórios ou críticos também aumentaram”. Os problemas pelos quais os reinos hispânicos passavam durante o século XV (crises financeiras, peste, fome e guerras) tiveram cada vez mais na figura do judeu converso o grande culpado, e isso sobredeterminou o legado medieval dando um sentido novo para os órgãos religiosos em Portugal e Espanha, um caminho próprio e radical que compensava, a seu modo, o isolamento diante das grandes decisões da Santa Sé, razão pela qual os reis tiveram papel especial nesse processo de instituição da Inquisição.
Prova disso é que outros tribunais elegeram alvos outros, e até formas de atuação diversas. As Inquisições de Navarra, da Itália e da França deram mais atenção à perseguição das bruxas, por exemplo, enquanto essa foi uma questão de somenos importância na Península.
O Santo Ofício ibérico encerrou investigações sobre bruxaria em 1614 e ninguém mais foi queimado por isso, nem em Portugal nem na Espanha. As superstições e sortilégios ainda eram perseguidos e penitenciados, mas a atenção da Inquisição cada vez mais se centrou nos conversos judaizantes, até por darem um retorno mais lucrativo.
Eis um quadro que envolve muitos elementos e muitas cores, que inclusive vão muito além do que foi analisado aqui. Também os personagens são muito variados: Santo Domingo, papas de várias épocas e ideais, reis como Fernando II de Aragão e Isabel de Castela, judeus, conversos ou não, e, por fim, Isaac Martin. Não há porque procurar aquilo que os une, quando, na verdade, estamos diante de indivíduos cuja historicidade parece se fundamentar na diferença – e na postura diante dessa diferença.
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