
Inquisição: heresias, tribunais e judeus na Península Ibérica
Preâmbulo
Quando se pensa em heresias, bruxas e fogueiras, logo se forma a imagem mental de uma cena tipicamente medieval, recuada tanto no tempo que até parece nunca ter acontecido – seria só mais um conto de fadas legado pelo romantismo que criou sua própria lente para olhar para a Idade Média, consagrando alguns estereótipos que cabe a nós, historiadores, destrinchar para encontrar o que não está aparente na documentação que sobreviveu até nossos dias.
Também quando se pensa em Inquisição há uma confusão, pois tal termo designa coisas diferentes, que por sua vez se transformam no decorrer da História. Inicialmente, tomo por “Inquisição” uma prática – a luta em defesa da ortodoxia católica através da investigação e interrogatório de suspeitos de heresia (outro termo polissêmico com o qual devemos ter cuidado). A institucionalização da Inquisição seguiu um processo longo, a ponto de podermos tomá-la por sinônimo de “Tribunal da Santa Inquisição” ou “Santo Ofício” apenas dois séculos após o início propriamente dito da perseguição sistemática de hereges na Europa medieval.
Este estudo se propõe a uma visão panorâmica desse processo de institucionalização, concentrando-se na experiência dos reinos ibéricos, sobretudo pelo aspecto múltiplo das problemáticas que surgem a partir da convivência com grandes contingentes de população muçulmana, berbere, judaica, entre outras minorias étnicas e religiosas. Como veremos, esse quadro demográfico será de suma importância para compreendermos as particularidades da história da Inquisição nesses territórios. Teremos ocasião, ainda, de analisar um pouco mais a fundo o papel destravador da radicalização do antijudaísmo na grande virada operada no início da era moderna a respeito das práticas inquisitoriais na Espanha e em Portugal.
Origens medievais da Inquisição
A perseguição à heresia na Europa começa desde que a Igreja Católica se afirma como mediadora legítima entre os poderes espirituais e os poderes terrenos, isso logo nos primeiros séculos da Era Cristã. No entanto, ela passa a ocorrer de maneira sistemática, e com apoio em autoridades constituídas - quer ligadas à própria Igreja, quer aos poderes laicos – apenas no século XII. Para tal, é mister fazer menção à centralização da Igreja enquanto instituição, que começa a tomar forma por essa mesma época – logo se percebe que os dois movimentos estão interligados.
Podemos rastrear o zelo pela ortodoxia a partir dos principais Concílios Gerais da Igreja, cada um deles procurando responder a demandas específicas para a manutenção do poder e da liberdade sacerdotais. No que se refere à Inquisição, cito apenas algumas medidas de alguns deles que já nos dão uma clara ideia da progressão desse problema.
O primeiro Concílio de Latrão (1139) já prevê a ordem de perseguição de hereges (mais precisamente os cátaros do Languedoc) pelo poder secular, o que já permite uma pausa para considerações importantes, pois por trás disso estão questões de doutrina religiosa, como a proibição de derramar sangue que cai sobre todo clérigo secular e regular. De fato, a Igreja romana teve nos imperadores e reis sempre fortes apoiadores, muitas vezes chamados de ministri Ecclesiae pela colaboração que prestavam aos papas na garantia de condições materiais e espirituais para a salvação das almas de seus súditos. A eficácia dessa colaboração está sujeita à resolução de uma série de pontos de conflito – muitos deles nunca chegariam a ser esclarecidos. Mas devemos reter essa questão para o momento, que virá, de refletir sobre o caráter duplo da Inquisição e a ingerência de reis sobre suas atribuições.
Seguindo, de volta, o rastro dos Concílios, o de Lateranense III (1179) legalizou o confisco de bens dos condenados de heresia, o que deu maior fôlego para as perseguições, na medida em que o financiamento da Igreja andava junto ao endurecimento da doutrina e centralização institucional. Já o Concílio de Verona de 1184, é por muitos considerado o fundador da Inquisição, por isso é parada obrigatória. Ele estabelece que bispos seriam nomeados para visitar paróquias suspeitas de heresia, pelo menos duas vezes por ano. Esses bispos passaram a ser designados “inquisidores ordinários”2. Estava fundado o cargo que causaria tanto temor nos séculos seguintes, mas a pessoa que o ocupava e a sua função ainda eram totalmente diferentes: A inquisição medieval é episcopal – a autoridade local julga e profere a sentença; ou seja, não há a centralização de todos os trâmites em um só Tribunal estabelecido. A inquisição estabelecida nos séculos XII e XIII funcionava por delegações papais, missões confiadas às ordens mendicantes para extirpar a heresia, sobretudo os dominicanos (os franciscanos tiveram atuação secundária). Esses inquisidores são mais missionários enviados para investigar casos de suspeita de heresia do que juízes implacáveis que conduzem os interrogatórios de pessoas trazidas para o Tribunal pelos ajudantes da inquisição, os “familiares”.
O Concílio de Latrão IV (1215) foi o mais importante em termos de sistematização da perseguição e justiçamento de hereges, e suas decisões seriam carregadas de futuro, ainda que seu rigor tenha tornado a aplicação dos cânones um tanto difícil3. Por esse motivo, a atividade da Cúria Romana foi intensa nos anos seguintes, sobretudo devido às consequências do reconhecimento da existência de ordens monásticas populares, como os franciscanos e os dominicanos, importantíssimas para a história da Inquisição, conforme veremos.
Em 1231, o papa Gregório IX publica a Exxcomunicamus, pela qual se determinam as penas dos hereges: aos arrependidos eram dadas penitência e prisão perpétuas, enquanto os hereges obstinados seriam justiçados pelo fogo. A partir daí, a Igreja instala tribunais inquisitoriais: no Languedoc e na Provença (1233-1237), em Navarra (1234), na Itália (1235), em Aragão e Catalunha (1248) e em Portugal (1376) 4. As funções dos inquisidores se complexificam na medida em que se percebe a Data em que os dominicanos passaram a ser chamados de inquisidores, pois até então não atuavam com tamanhos poderes para serem destacados dentre outras ordens enquanto guardas da ortodoxia.
importância de seu papel para a afirmação do poder da Igreja. É interessante notar que nessa fase da institucionalização da Inquisição, o Sumo Pontífice fazia um gerenciamento dos tribunais, cedendo privilégios e imunidades para os juízes eclesiásticos, mas procurando se manter como figura emanadora da lei. Em muito pouco tempo seria limitada essa ingerência, e de tal forma que fica difícil entender, por exemplo, as duas medidas do papa Alexandre IV que reforçam os inquisidores: permissão para torturar (1252) e direito de perdão mútuo e de reabilitação mútua em casos de excomunhão (1256). Tais prerrogativas os colocam acima da Santa Sé, ficando tão imunes contra o direito comum quanto jurisdicionalmente fora da hierarquia estabelecida pelo direito canônico.
Acontece que a Igreja não pouparia esforços para combater seus principais inimigos, aqueles que minam a sociedade de dentro para fora, os hereges.
Após um período de apogeu das práticas inquisitoriais, alguns papas, sobretudo Clemente V e João XXII, no início do século XIV, procuraram retomar o controle da atuação dos prelados nos tribunais, pois recebiam muitas reclamações sobre abusos cometidos por todas as partes.
Com o passar do tempo, o crescimento dos poderes dos reis e o Grande Cisma de Avignon (1378-1417) levaram à perda de importâncias dos inquisidores5, e o sistema medieval caiu em desuso, o que não significa dizer que a manutenção da ortodoxia não seguiu progressivamente o caminho da intolerância e das perseguições. A Inquisição medieval deu lugar a novos mecanismos de controle social mais adaptados aos novos tempos, sobretudo pela apropriação do direito de justiçar os “desviantes” por parte dos monarcas – da função reconhecida desde o século XII, os reis fizeram um fundamento para a instituição de Tribunais especiais sob seus auspícios no começo da era moderna. Mas antes de analisarmos como isso se deu na Península Ibérica, cabem algumas palavras ainda sobre a Inquisição medieval, mais precisamente sobre a atuação da Ordem dos Pregadores de Santo Domingo.
Muitos escritores desde o século XV insistiram na atribuição de Santo Domingos como primeiro inquisidor. De fato, a forma como as primeiras missões inquisitoriais apontam para o Santo fundador, pois sua Ordem só seria reconhecida, pelo papa Honório III em 1216, sob a condição de serem braços da Igreja nas regiões onde a fé católica se desviava – e esse lugar era, na época, o sul da França. Todo o trabalho que o antecessor de Honório III e grande líder no quarto Concílio lateranense, Inocêncio III, teve com os dominicanos por causa de sua insistência no direito de pregar a palavra e evangelizar os recônditos da Europa serviam agora para o combate dos “desviantes”.
Com efeito, se os hereges eram considerados uma praga que permanece, por ser “contagiosa” e sempre renascer6 - apesar da perseguição e aniquilação de seus defensores -, os monges deveriam se tornar juízes extraordinários, “independentes do direito comum e com permissão de dirigir tribunais de exceção” 7.
Anita Novinsky lembra ainda que as heresias medievais eram interpretações “desviantes” que colocavam em “dúvida os dogmas do catolicismo e a infalibilidade da Igreja” 8. Logo se verá como “herege” passará a ter um significado muito específico, sobretudo em Portugal: é o apóstata, o cristão converso que não pratica a fé cristã e volta aos costumes religiosos anteriores. Ou seja, as vítimas dessa inquisição medieval são muito diferentes daqueles condenados pela Inquisição moderna, pois são inimigos internos cuja fé professada deve ser extirpada para a saúde da sociedade cristã, ao contrário do “estrangeirismo” das pessoas que se mudavam indeterminadamente para os calabouços dos tribunais do Santo Ofício nos séculos XVI e XVII.
Voltando à questão dos dominicanos, podemos abrir espaço, assim como Frédéric Max, para argumentos de importantes escritores sobre a pretensa origem dominicano da Inquisição. Pedro Monteiro, padre dominicano português que escreveu uma “História da Inquisição”, afirmava que Domingos condenou judeus e mouros por apostasia em Burgos, Castela, em 1218. Segundo ele, isso ia ao encontro da função do Santo delegada pela Santa Sé: uma vez convertidos, mas não persistentes na fé cristã, mereciam castigo. Isso teria ocorrido de forma truculenta, sobretudo na França. Quando a Inquisição se torna fundamentada e a Inquisitio haereticae pravitatis toma o lugar do que antes era apenas a persecutio haereticorum, os abusos começam a acontecer. Alguns grupos, como a “Milícia de Jesus Cristo” lutava contra a heresia e preservavam a pureza do Cristianismo pela aplicação de técnicas violentas9·. Quando esses grupos recebem o direito de condenar legitimamente e sem apelação estariam fundadas as bases para a reprodução do sistema inquisitorial que seria conhecido pelos métodos não muito misericordiosos de produção da confissão, ao contrário, paradoxalmente, do lema que compõe lábaro sobre o brasão do Santo Ofício juntamente com a cruz, a espada, o louro e, às vezes, o próprio Santo Domingo: “misericordia et justitia”.
O historiador Henry Charles Lea, grande autoridade no assunto, diz que a atuação de Domingos em Burgos é uma lenda, mesmo que esteja na história oficial da Igreja entre os séculos XV e XVIII. E afirma isso com base no fato de não ter havido presença da inquisição em Castela até o fim do XV. Já Joseph de Maistre, defensor da Inquisição que escreveu cartas a um cavaleiro russo e as reuniu numa publicação do século XIX, acredita que Santo Domingo não conduziu autos. A Inquisição só foi “confiada a los dominicos en 1233, es decir, doce años después de la muerte de santo Domingo”10.
Enfim, já se pode perceber o quanto correu de tinta sobre essa questão, por isso basta para este estudo destacar aquilo que permanece diante dessa polêmica, a saber, a progressiva reunião de esforços para combater hereges sob a jurisdição eclesiástica da parte indivíduos que, de um modo ou de outro, servirão de exemplo, pelo seu trabalho, a sucessivas gerações de inquisidores. O caso dominicanos Vs. cátaros seria, então, o mais notável capítulo dessa história, pois teria dado mais “frutos”. De fato, a propaganda anti-hereges e anti-albigenses foi bem recebida em Aragão (para onde muitos tentavam fugir), e o rei Jacques I pediu a Roma permissão para instalar um tribunal em seu reino para conter essa dispersão. Ali mesmo, em 12/5/1312, ocorre o primeiro auto-de-fé da história: seis acusados de heresia foram queimados. É notável como a instalação dos tribunais dá sequência a uma pulsão pela perseguição, e a Inquisição moderna repetirá isso por todas as partes.
Concordando com as palavras de Henry Charles Lea, Anita Novinsky defende que até o final do XV a Inquisição não teve nenhuma penetração em Castela. Foi com a unificação política e a união das Coroas de Aragão e Castela que é alegada “a necessidade de unificação religiosa” de uma maneira mais literal. “Sob este pretexto, exige-se a eliminação das minorias culturais – os árabes e judeus” 11.
Entretanto, a península ibérica não ficaria livre de todo dos inquisidores até período tão avançado. Aragão abrigou algumas das maiores cabeças da Inquisição medieval, como, por exemplo, o dominicano e teólogo Nicolás Eymeric, que foi Inquisidor Geral do reino. Ele escreveu o paradigmático Directorium inquisitorium em 1358, que foi publicado apenas em 1578, mas circulou pela Europa por inúmeras cópias feitas para uso interno de conventos, mosteiros e, é evidente, tribunais de Inquisição, que, segundo ele tinham o “grande y destacado privilegio” de que seus “jueces no estén en él obligados a seguir el orden judicial” 12. Seu manual serviu em toda Europa como instrumento da metodização dos processos e interrogatórios, desde a suspeita até a fogueira, passando pela confissão sob tortura e uso de “sanbenitos”, os trajes de penitência. Para os casos de heresia, Eymeric previa três opções: acusação, denúncia e inquisição.
Na primeira, o acusador deve fornecer provas – se for falso o que acusou, deve ser castigado com severidade. Para que não haja esse risco, se instituíram os Procuradores Fiscais do Sto. Ofício, que ouvem as acusações e fazem a acusação processual sem risco de castigo. A denúncia era o método mais utilizado. Essa delação a um culpado ocorria sob juramento e mesmo que fosse somente por medo de não ser considerado cúmplice, pois caberia excomunhão nesse caso. Não era necessária a presença de testemunhos.
Já a inquisição ocorria quando não havia denunciante nem acusador. Era considerada Geral quando eram designados religiosos inquisidores e homens de bem para conduzir buscas nas casas, conforme prescrição do Concílio de Toulose. Quando é a fama de um indivíduo que destrava o mecanismo de inquirição, ou seja, por rumores, o suspeito é interrogado, mas é preciso haver dois testemunhos “seguros” da má fama do acusado. Nos dois casos é sugerida a cautela e o silêncio para que não se afete a honra do indivíduo, uma preocupação deixada de lado quando se iniciavam as investigações.
É interessante notar como tais obras seguiam na maré de um discurso culpabilizador que se centrava na noção de pecado para explicar o mundo, o que se tornou muitas pessoas, religiosas ou leigas, obcecadas pelo assunto e muito afeitas a cooperarem com a Inquisição, que se tornaria ainda mais radical quando associada ao “perigo judaizante”. Essa ajuda vinha quase automaticamente quando se iniciava uma investigação, pois “aunque habitualmente en mateira civil, nadie esté obligado a proporcionar contra sí mismo las piezas que puden servir como pruebas de su delito, esta obligación existe en materia de herejía”13.
Assim, todos estão obrigados a dar provas das heresias de outros – acusar é uma obrigação, o que nos leva a um último assunto antes da instituição da Inquisição em Castela e Portugal.
Um novo policiamento e a grande virada intolerante
Além dos movimentos moralizadores e monásticos, mais ou menos reunidos sobre o que se costuma chamar Reforma Gregoriana, ocorre durante o século XII uma mudança decisiva para o futuro, tanto da instituição religiosa quanto dos fiéis. Segundo José Mattoso, durante esse século altera-se a pouco e pouco a atitude dos poderes eclesiástico e secular, que na altura se tornam mais conscientes da sua força e se persuadem de agirem como representantes autorizados de Deus para definirem e perseguirem os crimes e pecados perpetrados por homens, sobretudo aqueles mais graves que punham em risco a pureza da fé cristã. Nessa grande razia contra o pecado, as estratégias dos poderes citados acima se tornam “progressivamente mais racionais.” 14, e os poderes policiais15 crescem a ponto tomarem as proporções observáveis nos autos-de-fé no Santo Ofício.
A obsessão pelo pecado jogou a favor do sistema inquisitorial. “A inquisição introduziu uma nova promessa de redenção, mas por um preço: a denúncia. O povo ansiava por essa redenção que vinha através de um ritual de purificação: os autos-de-fé” 16. Quem os assistisse ganhava indulgência que podia cobrir 40 dias, por isso os manuais como o de Eymeric sugerem a escolha atenciosa da data e local dos justiçamentos17, para que mais pessoas possam pôr à prova o efeito exemplar dessas punições.
É também pela mesma época, e certamente conectado a tudo isso, que o judaísmo surge como pauta de discussão.
É exatamente no século XIII, após um longo período de relativa tolerância e convivência mais ou menos pacífica dos cristãos com os sodomitas e praticantes da Lei de Moisés, que se desenvolve na Europa um forte sentimento de anti-semitismo e homofobia, tendo a Inquisição como ponta de lança nesta cruzada de ódio e intolerância. Logo em seguida, com o alastramento da Peste Negra (1348) e o preocupante desequilíbrio demográfico dela decorrente, judeus e sodomitas são acusados de terem provocado a ira divina e alastrado criminosamente esta epidemia.
Muito se tem escrito sobre a histórica tolerância dos povos ibéricos, característica essa que seria radicada nos contatos com costumes diferentes após a invasão muçulmana de 711, além de convívio com comunidades judaicas cujo estabelecimento na península remete aos primeiros séculos depois de Cristo. Em oposição, poucos puseram a teste tal tolerância, pois, se não há perseguições e guetos, Trata-se de um “entrelaçamento intrincado”, que segue um “percurso paralelo entre a ação repressora do Estado e a da Igreja”, dando conta de separar e misturar as noções de crime, o delito e o pecado.
O canonista castelhano Martim Pérez, autor de um “Libro de las confesiones” escrito em 1311, discorre sobre a possibilidade de sequestrar filhos de judeus para batizá-los. Os judeus “son siervos de los prinçipes e de los señores christianos en cuyas terras biven”, mesmo assim não se podem tomar seus filhos pequenos para batizá-los sem autorização dos pais. No entanto, Martim Pérez se vale dos postulados do “derecho e de los doctores” para afirmar que
los judios e los malos deven ser costreñidos con tribulaçiones e con quebrantos por que vengan a buena carrera, ca por el temor de la pena desusaran el mal, e por el buen uso enamorarse han del bien, e asi el uso de bien les fara sabroso lo que al comienço les era amargo19
Ou seja, parece haver uma tolerância prestes a ser rompida. O batismo forçado é pecado, mas há no substrato dessa ação uma iniciativa “filantrópica”. Os judeus tiveram que se acostumar desde cedo com o fato de que as restrições às suas liberdades ocorriam “para seu bem”. Segundo Anita Novinsky, seria apenas o lema “Um território, uma lei, uma religião”, dos reis católicos, o que marcaria o fim definitivo da histórica tolerância da Península Ibérica medieval, por isso podemos pensar num movimento progressivo, do qual darei mais detalhes adiante.
Além da mudança em relação ao convívio com judeus, a Península Ibérica se mostra desafiante como objeto de pesquisa devido à outra de suas peculiaridades: o isolamento diante das medidas da Igreja de Roma, não só geográfica como histórica.
A Igreja Castelhana, por exemplo, permaneceu isolada do resto dos movimentos europeus até o século XI, sobretudo em decorrência da ocupação muçulmana e das guerras de reconquista, e mostrou sérias dificuldades de aplicar as normas papais nos seus territórios. Andréia C. L. F. da Silva destaca ainda a permanência de “traços da religiosidade romano-visigótica” como um dos obstáculos20. Desde muito tempo, as igrejas encontravam-se nas mãos de senhores laicos e não havia uma organização entre as dioceses. Se isso forjou uma certa tradição é difícil de saber, o fato é que ingerência do poder real era mais aceita. Muitos bispos espanhóis participaram do concílio de Latrão de 1215, mas a igreja castelhana se preocupava mais com a Reconquista e com “traída y llevada cuestión del primado”21 – o que acarretava indignação por parte de emissários do Sumo Pontífice, bem como de altos cargos eclesiásticos orientados igualmente por ideais hierocráticos; assim, fica mais claro o porquê de alguns bispos não terem tido muita pressa em aplicar os cânones. Lado a lado com as dificuldades de comunicação andavam esses e muitos outros aspectos do processo histórico peninsular, por esses mesmos motivos incompatível com a maioria das decisões e reformas pastorais visada por Roma para a Cristandade.
Era, com efeito, uma época para grandes debates; conforme Margarida Garcez Ventura, as frequentes polêmicas, disputas, concílios e guerras desde o século XII atrasaram a “clarificação doutrinal” e a “renovação catequética no seu sentido mais amplo” 22. Era evidente tanto a necessidade de mudanças quanto a indecisão de meios e agentes para esse fim. “Esperava-se que as reformas iniciadas pelo papado e a codificação das leis canônicas pudessem fazer face ao problema, mas isso não aconteceu”
Por exemplo, a decisão de Latrão IV, de que o judeus deviam usar um distintivo para serem reconhecidos entre os cristãos, não foi acatada na Península. Se isso se mostrava problemático para em relação a pequenas, mas fundamentais regras, o que dizer sobre o controle de uma instituição que crescia acima da própria Igreja?
A distância em relação a Roma “definitivamente anulava todos os esforços de controlar as inquisições ibéricas”