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A IGREJA MEDIEVAL  - PRIMEIRA PARTE

 

 

Desde a Queda de Roma, 476

Até à Queda de Constantinopla, 1453.

Progresso do Poder Papal.

 

   

 

No período que vamos considerar, que durou quase mil anos, nosso interesse se dirigirá para a Igreja Ocidental, ou Latina, cuja sede de autoridade estava em Roma, que continuava a ser a cidade imperial, apesar de seu poder político haver desaparecido. Pouca atenção dispensaremos à Igreja Grega, governada de Constantinopla, exceto quando seus assuntos se relacionem com a história do Cristianismo europeu. Não relacionamos os acontecimentos por ordem cronológica, porém examinaremos os grandes movimentos, muitas vezes, paralelamente uns com os outros.

O fato mais notável nos dez séculos da Idade Média foi o desenvolvimento do poder papal. Já notamos em capítulos anteriores que o papa de Roma afirmava ser "bispo universal", e chefe da igreja. Agora o veremos reclamando a posição de governante de nações, acima de reis e imperadores. Esse desenvolvimento teve três períodos: crescimento, culminância e decadência.

O período de crescimento do poder papal começou com o pontificado de Gregório I, o Grande, e teve o apogeu no tempo de Gregório VII, mais conhecido por Hildebrando. É bom notar que desde o princípio, cada papa, ao assumir o cargo, mudava de nome. Gregório VII foi o único papa cujo nome de família se destacou na história depois de sua ascensão à cadeira papal. É acerca de Gregório I, que se conta a conhecida história de que, ao ver alguns escravos em Roma, de cabelos louros e olhos azuis, perguntou quem eram.

Disseram-lhe, então, que eram "angli", isto é, "ingleses", ao que ele respondeu: "Non angli, sed angeli", quer dizer, não ingleses, mas anjos. Mais tarde, quando foi eleito papa, enviou missionários à Inglaterra a fim de cristianizar o povo. Gregório expandiu o reino de sua igreja objetivando a conversão das nações da Europa que ainda se conservavam pagãs, conseguindo levar à fé ortodoxa os visigodos arianos da Espanha.

Gregório resistiu com êxito às pretensões do patriarca de Constantinopla, que desejava o título de bispo universal. Tormou a igreja praticamente governadora da província nas vizinhanças de Roma, preparando, assim, caminho para a conquista do poder temporal. Também desenvolveu certas doutrinas na igreja romana, especialmente a adoração de imagens, o purgatório, a transubstanciação, isto é, a crença de que na missa ou comunhão o pão e o vinho se transformam milagrosamente no verdadeiro corpo e sangue de Cristo.

O papa Gregório foi um dos fortes defensores da vida monástica, havendo sido ele mesmo um dos monges da época. Foi um dos administradores mais competentes da história da igreja romana, e por isso mereceu o título de Gregório o Grande. Sob o governo de uma série de papas, durante alguns séculos, a autoridade do pontificado romano aumentou e em geral era reconhecida. São várias as razões para justificar o crescente poder do papado.

Uma das razões por que o governo da sede romana era tão amplamente aceito no início desse período explica-se pelo fato de que, naquele período, a influência dos papas era sentida principalmente no fortalecimento da justiça. A igreja se pôs entre os príncipes e seus súditos, a fim de reprimir a tirania e a injustiça, para proteger os fracos e para exigir os direitos do povo. Nos palácios dos governantes, mais de um governante foi obrigado a receber a esposa que repudiara sem causa, e a observar pelo menos as formas exteriores da decência, por imposição dos papas. Houve, é certo, muitas exceções, pois houve papas que cortejavam reis e príncipes ímpios. Contudo, em sentido geral, o papeado, no início da Idade Média, era favorável aos governos justos e honestos.

As rivalidades e as incertezas dos governos seculares estavam em acentuado contraste com a firmeza e uniformidade do governo da igreja. Durante quase todos os séculos a Europa viveu em condições dissolventes, pois os governantes levantavam-se e caíam, lutava um castelo contra outro, enfim não havia autoridade completa e duradoura. O antigo império caiu no quinto século, e a Europa esteve à beira de caos, até o nono século, quando o império de Carlos Magno se estabeleceu. Quase todos os seus sucessores foram homens fracos; muitos deles procuraram o auxílio de Roma, e dispuseram-se a fazer concessões de poder a fim de obtê-lo. Uma vez conquistado poder que pertencera do Estado, a igreja o mantinha firmemente. Enquanto os governos dos Estados vacilavam e mudavam sucessivamente, o império da igreja permanecia cada vez mais forte. Durante esses séculos de instabilidade, a igreja era a única instituição firme. As reclamações de domínio por parte de Roma eram quase sempre apoiadas pelo clero, desde o arcebispo até ao sacerdote mais humilde. Durante a Idade Média, como veremos mais tarde, o monasticismo cresceu por toda parte. Monges e abades juntavam-se aos padres e bispos na luta pela conquista do poder. A igreja possuía fortes aliados em toda parte, e jamais falhavam na defesa de seus interesses.

Ainda que pareça estranho, o fato é que, na Idade Média, uma série de "fraudes pias" foram divulgadas a fim de manter o prestígio e a autoridade de Roma. Em uma época científica e de homens inteligentes, essas fraudes seriam investigadas, desaprovadas e desacreditadas. Entretanto, a erudição da Idade Média não entrava no terreno da crítica. Ninguém duvidava dos documentos que circulavam de modo amplo, e eram aceitos por todos, e por meio deles as afirmações de Roma eram sustentadas. Passaram-se vários séculos antes que alguém demonstrasse que esses documentos se baseavam em falsidade e não na verdade.

Um desses documentos fraudatórios foi a "Doação de Constantino". Muito tempo depois da queda do Império Romano na Europa, circulou tal documento com o propósito de demonstrar que Constantino, o primeiro imperador cristão, havia dado ao bispo de Roma, Silvestre I (314-335), autoridade suprema sobre todas as províncias européias do império, e que havia proclamado esse bispo como governador até mesmo de imperadores. O documento apresentava como razão e principal motivo da mudança da capital de Roma para Constantinopla, o fato que o imperador não permitia a nenhum governador permanecer em Roma, como rival do papa.

Mas o documento de maior influência da série fraudulenta foi o que passou a ser conhecido como "Decretais Pseudo-Isidorianas", publicado no ano 850. Afirmava-se que eram decisões adotadas pelos bispos primitivos de Roma, desde os apóstolos. Nesse documento apresentavam as maiores reivindicações, tais como a supremacia absoluta do papa de Roma sobre a Igreja Universal; a independência da igreja do Estado; a inviolabilidade do clero em todos os aspectos, ao ponto de reconhecer-lhes o direito de não prestarem contas ao Estado, declarando que nenhum tribunal secular poderia julgar questões pertinentes ao clero e à igreja.

Em épocas de ignorância e na ausência da crítica, esses documentos eram aceitos sem contestação, e durante centenas de anos constituíram-se num baluarte para as reivindicações de Roma. Ninguém duvidou da autenticidade desses documentos até ao século doze, quando já estava a igreja ancorada no poder. Somente com o despertar da Reforma, no século dezesseis, foram examinados esses documentos e ficou provada a fraude. Algumas das evidências da fraude são as seguintes:

A linguagem empregada não era o latim primitivo dos séculos primeiro e segundo, e sim uma língua corrompida e mista usada nos séculos oitavo e nono. Os nomes e as condições históricas a que se referiam os documentos não eram os mesmos usados no império, mas exatamente iguais aos que eram usados na Idade Média. As frequentes citações eram da Vulgata Latina, quando todos sabem que essa versão somente apareceu depois do ano 400. Uma carta que fazia parte desses documentos, dizia que fora escrita por Vitor, bispo de Roma no ano 220 a Teófilo, bispo de Alexandria, que viveu no ano 400. Imagine-se o disparate das datas. Que pensariam, em nossa era, de uma carta enviada pela rainha Elisabete I a Jorge Washington?

O crescimento do poder papal, apesar de sempre estar em ascensão, não era constante. Houve alguns príncipes que se opuseram ao poder papal, assim como houve governantes fracos que se submeteram sem reservas. Também houve papas fracos e papas perversos, principalmente entre os anos 850 a 1050, que desacreditaram seu posto mesmo durante os tempos de sua mais elevada supremacia.

O período culminante foi entre os anos 1073-1216, cerca de cento e cinquenta anos em que o papado exerceu poder quase absoluto, não somente na igreja, mas também sobre as nações da Europa.

Essa elevada posição foi conquistada durante o governo de Hildebrando, o único papa mais conhecido pelo nome de família do que pelo nome de papa Gregório VII, nome que escolheu ao assumir o cargo.

Hildebrando governou realmente a igreja, como o poder por trás do trono durante um período de vinte anos, antes de usar a tríplice coroa, e depois durante o governo papal, até à sua morte no ano de 1085.

Hildebrando reformou o clero que se havia corrompido, e interrompeu, ainda que por pouco tempo, o exercício da simonia, isto é, a compra de posições na igreja. Elevou as normas de moralidade de todo o clero, e exigiu o celibato dos secerdotes, que havia sido defendido, porém não estava em vigor, até então.

Libertou a igreja da influência do Estado, pondo fim à nomeação de papas e bispos pelos reis e imperadores; e decretando que qualquer acusação contra os sacerdotes e as relacionadas com a igreja, fossem julgadas por tribunais eclesiásticos. Até aquela data era costume o bispo receber um cajado e um anel do rei ou do príncipe governante, jurando fidelidade ao seu senhor secular. Isso praticamente significava que os bispos eram nomeados pelo governador. Hildebrando proibiu que os bispos fizessem tal juramento diante dos governantes.

Hildebrando impôs a supremacia da igreja sobre o Estado. O imperador Henrique IV, havendo-se ofendido com o papa Gregório, convocou um sínodo de bispos alemães induzindo-os (ou compelindo-os) a votar pela deposição do papa. Gregório, então, vingou-se com a excomunhão de Henrique IV, e isentou a todos os seus súditos da lealdade para com o imperador. Henrique IV viu-se totalmente impotente face à punição do papa. Por essa razão, no mês de janeiro de 1077, o imperador, pondo de lado todas as possessões reais, com os pés descalços e vestido de lã, permaneceu três dias de pé à porta do castelo do papa, em Canosa, no norte da Itália, a fim de fazer ato de submissão e receber perdão do papa.  Acrescente-se, porém, que logo que Henrique IV recuperou o poder, declarou guerra ao papa, e retirou-o de Roma. O papa Hildebrando morreu pouco depois, fazendo esta declaração. "Amei a justiça e aborreci a iniquidade, por isso morro no exílio." Seu triunfo, porém, foi maior do que a sua derrota.

Gregório VII não desejava abolir o governo do Estado, mas que este fosse subordinado ao governo da igreja. Aspirava a que o poder secular governasse o povo, porém sob a elevada jurisdição do reino espiritual, como ele o compreendia.

Outro papa cujo governo demonstrou elevado grau de poder foi Inocêncio III (1198-1216). Ele fez esta declaração no discurso de sua posse: "O sucessor de S. Pedro ocupa uma posição intermediária entre Deus e o homem. É inferior a Deus, porém superior ao homem. É juiz de todos, mas não é julgado por ninguém."

Em uma de suas cartas, Inocêncio escreveu que ao papa "havia sido entregue, não somente a igreja, mas também o mundo inteiro, com o direito de dispor finalmente da coroa imperial e de todas as outras coroas". Eleito aos trinta e sete anos para ocupar o lugar de papa, no correr dos anos sustentou com êxito essas grandes pretensões.

Inocêncio III elegeu para desempenhar as funções de imperador, a Otto Brunswick, o qual declarou publicamente que alcançara a coroa "pela graça de Deus e da sede apostólica". Em virtude da insubordinação de Otto, este foi deposto e outro imperador foi eleito. O papa assumiu o governo da cidade de Roma, decretando leis para os seus funcionários, figurando ele próprio como chefe. Em verdade, com esse ato estabeleceu um Estado sob o governo direto do papado, governo que foi o precursor dos "Estados da Igreja". O papa obrigou o licencioso Filipe Augusto, rei da França, a aceitar novamente sua esposa da qual se divorciara injustamente. Excomungou o rei João Sem Terra (inglês), e obrigou-o a entregar a coroa ao legado papal, e a recebê-la de novo, mas como súdito do papa. Inocêncio III pode ser considerado o maior de todos os papas em poder autocrático. Contudo, não teria possuído tal autoridade, não fora a grandeza alcançada por Hildebrando, seu antecessor.

Porém enquanto a Europa saía do crepúsculo da Idade Média, e a lealdade nacional se levantou para competir com a eclesiástica, começou a decadência do poder papal com Bonifácio VIII, em 1303. Ele, sem dúvida, possuía pretensões tão elevadas como qualquer dos seus predecessores, porém não eram obedecidas.

Bonifácio proibiu o rei da Inglaterra de promulgar leis de impostos sobre as propriedades da igreja e sobre as receitas ou tesouros sacerdotais, porém foi obrigado a recuar, embora em forma de tratado, em que os sacerdotes e bispos "davam" parte do que recebiam, para os gastos do reino. Questionou com Filipe, o Formoso, de França, o qual lhe declarou guerra, apoderou-se do papa e encarcerou-o. Apesar de mais tarde haver sido libertado, contudo morreu logo depois, de tristeza. A partir de 1305, durante mais de setenta anos, todos os papas foram escolhidos sob as ordens dos reis de França e estavam submissos à vontade destes.

O período de 1305 a 1377 é conhecido como "Cativeiro Babilônico". Por ordem do rei de França a sede do papado foi transferida de Roma para Avinhão, no sul da França. Os papas tornaram-se títeres sob o controle do governo francês. Outros aspirantes ao papado surgiram em Roma, e por toda parte havia papas e antipapas em vários países. As ordens papais eram desrespeita-das; as excomunhões não eram levadas a sério. Eduardo III por exemplo, ordenou ao legado papal que abandonasse o seu reino.

No ano de 1377, o papa reinante, Gregório XI, voltou a Roma, e em 1414 foi realizado o Concílio de Constança a fim de decidir as reclamações de quatro papas existentes. Aconteceu então que o Concílio depôs os quatro e escolheu um novo papa. Desde 1378, os papas continuaram a morar em Roma, alimentando pretensões tão elevadas como sempre aconteceu, porém incapazes de colocá-las em vigor.

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